sábado, 27 de junho de 2009

Pedra da Escrita de Serrazes

(…)Pousava a velha Rolleiflex junto de um pinheiro. De braços abertos ia afagando toda a superfície, certificando-me se, desde a última visita, nada lhe acontecera. Lentamente meus dedos percorriam os sulcos, refazendo a viagem.

Sentava-me então a alguns metros da face gravada que a luz da manhã começava a iluminar. O Sol tomava altura, colocando-se bem de frente. Percebera entretanto não ter sido por acaso que a pedra fora trabalhada no sentido do Nascente. Fora oferecida ao Sol que, dia a dia, a visitava, rodeando-a longamente, envolvendo-a na sua luz - possuindo-a, enfim!

E eu sentado no vértice anterior do triângulo, assistia ao rito milenar que, cada vez mais, me atraía.(…)

David de Almeida in catálogo da exposição Exercícios Líticos, Galeria 111, Lisboa, Dezembro de 1982 (auto citação)

Na altura em que escrevi este texto, a minha relação com a Pedra da Escrita de Serrazes era de enamoramento puro.
Mais do que a razão da sua existência, do motivo que levara o Homem da Pré-história, sem grandes recursos oficinais a retirar o que calculei serem 50 cm. de granito do calhau arredondado pelos tempos, com o propósito evidente de lhe aplanar uma face, questionava o porquê da sua existência.
Como se aquela tarefa ciclópica não bastasse, continuara a sacar pedra, mas agora deixando saliente uma moldura em redor do que, retirada a massa da calota granítica, se assemelhava a um arco com as extremidades enterradas no solo.
E eu para ali, intrigado pelo geometrismo puro das circunferências que se elevam em elegante curva pela direita.
Intrigado também por um orifício em meia cana - que não foi provocado pela utilização de um cinzel com intenção de fazer um buraco redondo - situado no limite superior da Pedra, abaixo e à direita de um vértice provocado pelo que resta da moldura daquele campo onde se desenvolve uma matemática infindável. E ainda por mais duas circunferências menores, também concêntricas do lado osquerdo superior da face gravada.
Não, não se trata de um passatempo de pastores. Tomado de uma espécie de cegueira – a cegueira da paixão? -, não procuro nada, mantenho-me na expectativa que ela corresponda à minha dedicação, revelando-me o seu segredo.
Vou-a desenhando, vou-a modelando como se modela o seio da mulher amada, comprimindo com os dedos finos papéis contra o relevo como quem, com uma gaze, comprime o peito que acabou de aleitar.
Acampo junto dela e tacteio-lhe a face, levo-a para o atelier, peito moldado com silicone, faço-a minha.
Depois começou a tirar medidas ao sol, a contar os dias, a inventar os meses que separava pelas luas e, com um tição arrancado da fogueira sempre acesa, a fazer marcações na face afagada, determinando pontos, sulcando circunferências umas por dentro das outras conforme a sombra se movia.

Estou no Castro da Cárcoda, num barranco sobranceiro à ruína de uma das habitações. Levo comigo uma vara que, por acaso, apanhara pelo caminho. Sob o sol abrasador de um Junho quente, explico a um amigo que me acompanha que, a escassos quilómetros na direcção que aponto, existe uma pedra, a da Escrita de Serrazes, que há anos sigo e me intriga.
A sombra da vara projecta-se numa linha que, partindo de meus pés, se inclina para a esquerda.

Eureka! Não gritei como Arquimedes porque fiquei sem palavras.

Com a vara na mão, alcanço a Pedra, no meio da mata. Trepo pela traseira e introduzo a vara no pequeno buraco, em posição vertical à face gravada. A sombra projecta-se sobre o conjunto de concêntricas de maior dimensão, atravessando o centro, rasgando-o ao meio.

Paro para pensar.

Preciso fixar o ponteiro naquela posição. Improviso um atilho com giestas presas à sua extremidade anterior, ato-lhe uma pedra na outra ponta e assim o fixo ao orifício em meia cana. O peso da pedra é suficiente para o manter estável.
Como tenho que partir de uma base que me sirva de referência, marco o lugar onde a sombra passa pelo centro das circunferências e corto a vara por aí.

Noventa e cinco centímetros.
Sábado, 23 de Junho, dois dias depois do Solstício do Verão de 1983.
11h35m.

Sigo o percurso da sombra do ponteiro durante todo o Verão.

Os círculos da esquerda alta parecem corresponder ao nascer do Sol, mas a mata, densa, não mo deixa confirmar.

De acordo com a altura do sol, a sombra vai-se movendo para a direita e para a esquerda, alongando-se depois, mas não ultrapassando os limites do conjunto dos círculos de maior dimensão, os mais próximos do solo, subindo, com a aproximação do equinócio de Setembro até ao conjunto seguinte, assinalado por um raio que o atravessa até ao centro, marcado por um ponto de forte expressão. Esta face fica iluminada até cerca das três da tarde, altura em que, com o sol a caminho do poente, é tomada pela sombra.

Chegado o Equinócio de Setembro, o Sol, à medida que baixa, começa a levantar a sombra do ponteiro que me serve de referência de forma que, às mesmas 11h35m. a sombra da sua extremidade se situa no centro do segundo conjunto de concêntricas.
Porque está este conjunto brindado com um raio vertical, perfeito, rigoroso?

A sombra deixou o último círculo do Verão. O Homem reuniu o grupo. Era o tempo de colher o feijão, de preparar a sementeira do trigo e do centeio. Havia que sachar e estrumar as terras, que as preparar para as sementeiras do Outono e do Inverno.
Ainda acompanho a viagem da sombra durante o Outono e, tanto quanto me permite a luz peneirada pela folhagem dos eucaliptos e pinheiros, vou também conferindo os outros círculos: os do Inverno primeiro, que são os que estão mais acima, os da Primavera depois, colados ao do Outono. Mas destes só poderia ter uma leitura completa se não tivesse o arvoredo a interromper a viagem da luz. De qualquer
forma com uma certeza eu fico: a Pedra da Escrita de Serrazes é um Calendário.Que pode ter sido também sítio de rituais relacionados com a agricultura.

Consulto documentos sobre arqueoastronomia e constato que, em Chacra Mesa, num vale situado no noroeste do Novo México, milénios após todos estes trabalhos, talvez dois, talvez mais, outro Homem, outros Homens movimentaram três enormes lajes para construírem outro calendário, a “Roca Fajada” (Fajada Butte), com o mesmo princípio, mas de efeito contrário. As pedras são separadas por uma abertura que projecta um feixe de luz do Sol ou da Lua com a forma de uma adaga, no centro de uma das duas espirais gravadas no penhasco que se encontra atrás das lajes, indicando assim os solstícios e os equinócios.

Curiosamente, 11h15m. é a hora a que a luz atravessa a espiral no solstício do Verão na “Roca Fajada”.

Entusiasmado com esta revelação, desloco-me ao local para ver se tudo estava em condições para uma observação nocturna e encontro a Pedra coberta por um grotesco telheiro, o que anulou qualquer tipo de observação seja ela diurna ou nocturna.

Por isso nunca tive oportunidade de testar o efeito da luz da lua, se é que o produz.

Entretanto cheguei a algumas conclusões.

Embora com alguma experiência na observação e leitura de gravuras rupestres não encontro qualquer sinal de figuras antropomórficas ou zoomórficas.

Ao “dissecar” a face gravada, concluo que a retícula, as linhas cruzadas nela lavradas nada têm que ver com o propósito original, tratando-se de intervenções posteriores que, com alguma – muita - boa vontade, se assemelham a uma ave azteca o que não tem qualquer cabimento nem no tempo nem no espaço.

O telheiro impede uma “conservação” natural do monolito. A humidade do Inverno produz alguns líquenes que, no Verão, o calor do sol vai secando. Foi sempre assim.
O local não sofre, aparentemente, relevantes efeitos da poluição, pois trata-se de uma zona de mata, arejada q. b., afastada de uma estrada municipal que não tem um movimento significativo.

Seria suficiente uma cerca de rede com uma porta cuja chave se encontrasse no Município, solução praticada em monumentos com o mesmo grau de importância já na altura em que foi colocado o telheiro.
Haveria que impedir o acesso a quem não estivesse autorizado e, mesmo assim… quem fez as fotografias oficiais utilizadas para divulgação da região encarregou-se de fazer uma interpretação própria dos elementos gravados, realçando com carvão os sulcos de que mais gostou.

Não detenho a verdade. Mas tenho alguns factos facilmente demonstráveis. E uma vontade muito grande de implodir os quatro pilares de betão e as placas de fibrocimento que asfixiam a Pedra da Escrita de Serrazes.

Solstício de Verão, 2009

6 comentários:

  1. Interesssante mas também preocupante.
    S. Pedro do Sul, agora cidade, deve reivindicar o direito ao seu património.
    Monica Junqueira

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  2. Felicito o David de Almeida por esta boa iniciativa. Conheciamos o seu grande interesse pela arte rupestre, tendo estudado aturadamente algumas peças, daí resulando diversas obras suas, não só na gravura, mas também na pintura e escultura.

    Em boa hora criou agora o seu blog, oferecendo-nos aqui uma bela lição que é o resultado da sua pesquisa, mas com a conclusão, demonstrando (em texto)como ali chegou.

    Em Portugal há outras "Pedra da Escrita de Serrazes", muitos exemplares de gravura nas pedras, feitas pelos antepassados que por este País andaram há alguns milhares de anos. Nem sempre são divulgadas. Sobre esta pedra de S.Pedro do Sul ficámos a saber mais ou simplesmente a saber da sua existência, graças ao trabalho do David de Almeida e à sua generosidade, divulgando-a.

    Aos poderes instituídos cumpre protegê-las e trazer os interessados a visitá-las.

    Obrigado David por mais este trabalho. Com o abraço do
    Luís Fernandes

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  3. Obrigada David. Vou voltar muitas vezes ! Beijo.

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  4. É como o David de Almeida diz: aquela pedra com círculos gravados, ali perdida no meio do mato, é uma provocadção.
    Responder às provocações é função da Arte, expicá-las é função da Ciência. O David de Almeida tem um pé num lado e o outro pé no outro.
    Diz coisas que fazem sentido; outros estudiosos que se debrucem sobre o mesmo objecto e que digam também de sua justiça.
    As autoridade culturais administrativas com poder decisório devem ouvir o David de Almeida com vista a que aquela pedra se transforme num centro de estudo do paleolítico local.
    Jaime Gralheiro

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  5. Achei um espectaculo!
    Adoro este género de ligaçoes com o passado e as pedras tem memória e alma!
    Pena o MAU GOSTO do " ABAFo".
    Apesar de maltratadfa visualmente tem uma imponencia ímpar. Deveria ser acarinhada e converter-se num dos ícones de S. Pedro do Sul, integrada num parque natural que lhe desse dignidade e a fizesse sobressair da beleza vegetal que possa vir a rodea-la.

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  6. Já lá fui umas duas vezes e, como curioso, gosto de tentar perceber qual seria utilidade de tais artefactos, ainda bem que existem pessoas que possuem o know-how para traduzir o nosso legado de outros tempos, terei outra perspectiva da próxima vez que lá for.
    Parabéns,
    Mário Martins

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