Dei os meus primeiros tropeções num troço da estrada romana
que ligava Viseu ao Porto, Norte de Portugal, passando junto à capela da
Senhora da Guia, entretanto erguida no Castro com o mesmo nome, onde, dadas as
relações emocionais que meu Pai tinha com o lugar, passávamos alguns dias de
Domingo.
No dia da romaria dedicada ao Santo, sentava-me
(sentavam-me) na “cadeira de S. Lourenço”, que mais não era, viria a
descobri-lo mais tarde, que um altar de sacrifícios.
E assim, naturalmente, descobria dolmens e menires que se
cruzavam no meu caminho e cuja presença se viria a tornar numa forte componente
do meu trabalho.
Comecei por decalcar gravuras rupestres, percorri
exaustivamente a viagem do sílex “regressando” à rocha lisa, na esperança de,
ao encontrar o conceito, descobrir o objectivo do projecto.
Adquiri assim alguma prática sobre processos de trabalho e
épocas em que as incisões - algumas delas sobrepostas e gravadas em tempos
distintos - tiveram lugar.
Conhecia a Pedra da Escrita de Serrazes e admirava-lhe a
harmonia dos círculos que para mim, durante muito tempo, não passaram disso
mesmo: círculos concêntricos gravados num monólito com cerca de dois metros e
meio de altura, sendo que dum deles, do maior, constava um raio vertical.
Estimo terem sido cortados daquela massa de granito com
quase 3 metros de altura cerca de 50 cm. no seu ponto mais alto, com o fim de
nivelar a face a gravar. Terminada aquela tarefa ciclópica - visto que os
recursos oficinais eram escassos – foi-se extraindo mais matéria com o fim de
marcar um remate em relevo, moldura endeusando a obra.
Intrigava-me, além do geometrismo das circunferências que se
elevam em elegante curva para a direita, um orifício em meia-cana situado no
limite superior da Pedra, abaixo e à direita de um vértice provocado pelo que
resta da dita moldura. Trabalhava nela - com ela - há alguns anos e, à força de
tanto a viajar, havia pontos estranhos que gostava de ver esclarecidos.
Desenhei-a, fotografei-a e modelei-a comprimindo finas
folhas de papel húmido contra o seu corpo inciso.
Moldei-a em silicone e com ela comecei a série de trabalhos
em "cast-paper" intitulada “exercícios líticos”, que se estendeu a
outras gravuras rupestres.
Encontrava-me um dia num barranco sobranceiro às ruínas de
uma das casas do Castro da Cárcoda. Tinha comigo uma vara. Sob o sol de um
Junho quente, comentava com um amigo que me acompanhava a existência da Pedra
da Escrita de Serrazes a escassos quilómetros, na direcção que apontava.
Reparei então que a sombra da vara se projectava na parede
vertical da habitação, numa linha que, passando pelos meus pés, se inclinava
para a esquerda.
Senti que podia estar próximo de desvendar um segredo
guardado há séculos.
Um quarto de hora depois, alcançava a Pedra, no meio da
mata. Trepei pela calota traseira e introduzi a vara no pequeno buraco, em
posição vertical à face gravada. A sombra projectava-se sobre o conjunto de
concêntricas de maior dimensão, atravessando o ponto central.
Precisava fixar a vara naquela posição. Fiz-lhe um bisel
numa das pontas para a adaptar à forma do buraco e improvisei um atilho com
giestas que fixei a cerca de 15 cm. da extremidade anterior da vara, atando-lhe
uma pedra na outra ponta.
Introduzi-a no furo e assim a fixei.
O peso da pedra - que a obrigava a elevar-se - era
suficiente para a manter estável. Depois foi uma questão de ajustar a
perpendicularidade do ponteiro.
Como tinha que partir de uma base que me servisse de padrão,
coloquei uma marca no lugar onde a sombra cruzava o centro das circunferências.
Noventa e cinco centímetros.
Eram 11:35h. de Sábado, 23 de Junho. Por coincidência, dois
dias depois do Solstício do Verão de 1983.
Com o passar dos tempos tive a oportunidade de conferir que,
no Solstício do Verão, àquela hora, a ponta de uma vara com 95 cm. de
comprimento indicava com precisão o seu início.
Segui a sombra do ponteiro durante três meses, por vezes
prejudicado pela ramaria dos eucaliptos que entretanto cresceram no terreno, em
tempos certamente um descampado. Os carvalhos, abundantes nestes recintos,
situam-se a cerca de 200 metros.
De acordo com a altura do Sol e o movimento da Terra, a
sombra ia-se movendo para a direita e para a esquerda, alongando-se depois, mas
não ultrapassando os limites do conjunto dos círculos de maior dimensão, os
mais próximos do solo, subindo até ao conjunto seguinte com a aproximação do
Equinócio do Outono; este é assinalado por um raio que parte de um ponto
central de forte expressão. A face gravada permanecia iluminada até cerca das
três horas da tarde, altura em que, com o sol a caminho do poente, era tomada
pela sombra.
Chegado o Equinócio de Setembro, o Sol, à medida que
baixava, levantava a sombra do ponteiro que me servia de referência de forma
que, às mesmas 11h35m. a sombra da sua extremidade se situava no centro do
segundo conjunto de concêntricas.
Acompanhei a viagem da sombra durante o Outono e, tanto
quanto me permitiu a luz peneirada pela folhagem da vegetação, fui também
conferindo os outros conjuntos de círculos: o do Inverno primeiro, que abre a
parte superior do conjunto, depois o da Primavera, encostado ao do Outono.
Estas constatações e a comparação com outros conjuntos
megalíticos da área da arqueoastronomia, levaram-me a concluir que a Pedra da
Escrita de Serrazes é um Calendário Solar, que pode ter sido também lugar de
rituais relacionados com a agricultura.
Recentemente alguém me chamou a atenção para uma pedra
gravada integrada num caminho da aldeia, com elementos relacionados com os da
Pedra da Escrita. Fotografei-a tal como aparecia no muro que o empedrado do
caminho escondia e, depois, com a colaboração da autoridade local, levantámos a
calçada pondo a descoberto a totalidade da pedra existente, provavelmente o
fragmento de uma peça de maior dimensão. Fora reutilizada uma pedra já gravada
com um conjunto de “covinhas”.
É provável que este fragmento - no caso de ter relação com a
pedra aqui citada - tenha constituído parte de um arquétipo móvel que,
devidamente posicionado, indicaria a posição exacta da definitiva. Se assim
for, fica reforçada a tese da utilização “científica” da aludida Pedra da
Escrita.
Encontrei entretanto elementos sobre um outro Calendário
Astronómico (nele a Lua tem também a sua importância) em Chacra Mesa, num vale
situado no noroeste do Novo México (EUA). Foram movimentadas três enormes lajes
que, colocadas ao alto, projectam linhas de luz nas espirais gravadas no
rochedo indicando o início dos Solstícios e dos Equinócios. O princípio é o
mesmo do da Pedra da Escrita de Serrazes com a diferença de que é um feixe
luminoso e não uma sombra que conduz à leitura do instrumento.
C uriosamente, 11h15m é a hora a que a luz atravessa o ponto
de início da espiral no Solstício do Verão na “Roca Fajada”.
No Vale do Erges
A Pedra de Serrazes foi um marco no meu trabalho e, com ela,
dei outro rumo à viagem. Viagem que, em 1991, me levou a trabalhar com gravuras
rupestres no Vale do Tejo.
As figuras acéfalas ali existentes colocavam-me uma questão
para a qual não encontrava resposta: porquê sem cabeça?
Encontram-se, próximo de alguns dos núcleos de gravuras,
rochas picotadas sem forma definida que sugerem tratar-se de exercícios
práticos com o fim de verificar o comportamento da rocha, as suas
características, grau de dureza ou forma de lascar.
Com os utensílios disponíveis na época, seria grande o
esforço para concretizar uma figura por picotagem. Mais improvável ainda seria
que aquela população se desse ao trabalho de a registar por acaso.
Deveria haver alguma razão lógica para aquela supressão física.
Em Maio de 2013 visitei, a convite do arqueólogo Francisco
Henriques os "santuários" rupestres do Vale do Rio Erges, afluente do
Tejo, que, com ele, delimita a fronteira com Portugal na província Espanhola de
Cáceres. Juntou-se-nos Mário Chambino, arqueólogo que faz parte da equipa de
investigadores que se dedicam a expedições arqueológicas, com resultados
notáveis.
O caminho que leva ao rio é escarpado, seguimos a salto por
trilhos calcados por animais, ou por algum pescador solitário, pois contrabando
por ali há já muito que se não pratica.
Qualquer que seja o sentido em que nos desloquemos, nunca
temos uma perspectiva comum do companheiro que nos precede. Ao descermos
vimo-lo a pique, abaixo de nós, a cabeça em primeiro plano, as ancas escondendo
parte dos membros inferiores.
Durante a subida o nosso olhar esbarra nas pernas de um
corpo a que a gravidade provocada pelo declive, obriga a andar inclinado
fazendo um ângulo agudo com o terreno, e numas costas arqueadas, que lhe
ocultam a cabeça.
Apenas as gravuras do abrigo da Foz do Ribeiro das Taliscas
eram abstractas, filiformes.
As do Abrigo Catarina, junto à foz do rio Erges, as da Foz
do Ribeiro da Enchacana e as da Tapada da Foz tinham em comum representações
antropomórficas com e sem cabeça, uma delas com a cabeça assomando sobre as
costas.
As gravuras acéfalas
aparecem descritas nos estudos e registos da especialidade como “não tendo
cabeça figurada”. Nunca vi ou li nenhum estudo ou teoria para o facto de serem
representadas sem aquela parte do corpo.
O dia chegava ao fim. Iniciámo-lo com a visita ao Abrigo
Catarina, de fácil acesso por se encontrar relativamente perto da ponte de
Alcântara, junto do antigo posto de controlo fronteiriço. Os outros dois
abrigos, pela dificuldade de acesso acabariam por nos tomar o resto do dia.
Sentámo-nos numa rocha que mergulhava rio adentro, junto ao
abrigo da Foz do Ribeiro das Taliscas comentando a viagem no tempo que nos foi
dado viver nesse dia.
Percorrêramos milhares de anos de história pela ponta de uns
dedos já macerados vivendo, através deles, tempos de que não temos memória.
Chegara a hora de regressar.
De mochilas às costas e cajados na mão iniciámos a subida. O
Chambino como “batedor” seguido do Francisco, eu fechando a fila.
Observava os meus companheiros. Como seguia o Francisco que
avançava num plano mais elevado, não lhe via a cabeça e as suas costas faziam
um segmento de arco perfeito que lhe ocultava a cabeça (hoje, em função de
experiências feitas com base na inclinação do terreno, estimo que o desnível
seria, em média, de 50%).
E com todas as dúvidas que possam ser levantadas, penso que
a figuração destes antropomorfos sem cabeça pode ter origem no modo como, tal
como eu, ao subir a encosta de regresso ao povoado estes homens se viam uns aos
outros e assim se representavam.
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