quarta-feira, 21 de maio de 2014

Uma viagem pela gravura rupestre


Centro Universitário de S. Paulo, 17 de Maio de 2014 

 Dei os meus primeiros tropeções num troço da estrada romana que ligava Viseu ao Porto, Norte de Portugal, passando junto à capela da Senhora da Guia, entretanto erguida no Castro com o mesmo nome, onde, dadas as relações emocionais que meu Pai tinha com o lugar, passávamos alguns dias de Domingo.
 No dia da romaria dedicada ao Santo, sentava-me (sentavam-me) na “cadeira de S. Lourenço”, que mais não era, viria a descobri-lo mais tarde, que um altar de sacrifícios.
 E assim, naturalmente, descobria dolmens e menires que se cruzavam no meu caminho e cuja presença se viria a tornar numa forte componente do meu trabalho.
 Comecei por decalcar gravuras rupestres, percorri exaustivamente a viagem do sílex “regressando” à rocha lisa, na esperança de, ao encontrar o conceito, descobrir o objectivo do projecto.
 Adquiri assim alguma prática sobre processos de trabalho e épocas em que as incisões - algumas delas sobrepostas e gravadas em tempos distintos - tiveram lugar.
 Conhecia a Pedra da Escrita de Serrazes e admirava-lhe a harmonia dos círculos que para mim, durante muito tempo, não passaram disso mesmo: círculos concêntricos gravados num monólito com cerca de dois metros e meio de altura, sendo que dum deles, do maior, constava um raio vertical.
 Estimo terem sido cortados daquela massa de granito com quase 3 metros de altura cerca de 50 cm. no seu ponto mais alto, com o fim de nivelar a face a gravar. Terminada aquela tarefa ciclópica - visto que os recursos oficinais eram escassos – foi-se extraindo mais matéria com o fim de marcar um remate em relevo, moldura endeusando a obra.
 Intrigava-me, além do geometrismo das circunferências que se elevam em elegante curva para a direita, um orifício em meia-cana situado no limite superior da Pedra, abaixo e à direita de um vértice provocado pelo que resta da dita moldura. Trabalhava nela - com ela - há alguns anos e, à força de tanto a viajar, havia pontos estranhos que gostava de ver esclarecidos.
 Desenhei-a, fotografei-a e modelei-a comprimindo finas folhas de papel húmido contra o seu corpo inciso.
 Moldei-a em silicone e com ela comecei a série de trabalhos em "cast-paper" intitulada “exercícios líticos”, que se estendeu a outras gravuras rupestres.
 Encontrava-me um dia num barranco sobranceiro às ruínas de uma das casas do Castro da Cárcoda. Tinha comigo uma vara. Sob o sol de um Junho quente, comentava com um amigo que me acompanhava a existência da Pedra da Escrita de Serrazes a escassos quilómetros, na direcção que apontava.
 Reparei então que a sombra da vara se projectava na parede vertical da habitação, numa linha que, passando pelos meus pés, se inclinava para a esquerda.
 Senti que podia estar próximo de desvendar um segredo guardado há séculos.
 Um quarto de hora depois, alcançava a Pedra, no meio da mata. Trepei pela calota traseira e introduzi a vara no pequeno buraco, em posição vertical à face gravada. A sombra projectava-se sobre o conjunto de concêntricas de maior dimensão, atravessando o ponto central.
 Precisava fixar a vara naquela posição. Fiz-lhe um bisel numa das pontas para a adaptar à forma do buraco e improvisei um atilho com giestas que fixei a cerca de 15 cm. da extremidade anterior da vara, atando-lhe uma pedra na outra ponta.
 Introduzi-a no furo e assim a fixei.
 O peso da pedra - que a obrigava a elevar-se - era suficiente para a manter estável. Depois foi uma questão de ajustar a perpendicularidade do ponteiro.
 Como tinha que partir de uma base que me servisse de padrão, coloquei uma marca no lugar onde a sombra cruzava o centro das circunferências.
 Noventa e cinco centímetros.
 Eram 11:35h. de Sábado, 23 de Junho. Por coincidência, dois dias depois do Solstício do Verão de 1983.
 Com o passar dos tempos tive a oportunidade de conferir que, no Solstício do Verão, àquela hora, a ponta de uma vara com 95 cm. de comprimento indicava com precisão o seu início.
 Segui a sombra do ponteiro durante três meses, por vezes prejudicado pela ramaria dos eucaliptos que entretanto cresceram no terreno, em tempos certamente um descampado. Os carvalhos, abundantes nestes recintos, situam-se a cerca de 200 metros.
 De acordo com a altura do Sol e o movimento da Terra, a sombra ia-se movendo para a direita e para a esquerda, alongando-se depois, mas não ultrapassando os limites do conjunto dos círculos de maior dimensão, os mais próximos do solo, subindo até ao conjunto seguinte com a aproximação do Equinócio do Outono; este é assinalado por um raio que parte de um ponto central de forte expressão. A face gravada permanecia iluminada até cerca das três horas da tarde, altura em que, com o sol a caminho do poente, era tomada pela sombra.
 Chegado o Equinócio de Setembro, o Sol, à medida que baixava, levantava a sombra do ponteiro que me servia de referência de forma que, às mesmas 11h35m. a sombra da sua extremidade se situava no centro do segundo conjunto de concêntricas.
 Acompanhei a viagem da sombra durante o Outono e, tanto quanto me permitiu a luz peneirada pela folhagem da vegetação, fui também conferindo os outros conjuntos de círculos: o do Inverno primeiro, que abre a parte superior do conjunto, depois o da Primavera, encostado ao do Outono.
 Estas constatações e a comparação com outros conjuntos megalíticos da área da arqueoastronomia, levaram-me a concluir que a Pedra da Escrita de Serrazes é um Calendário Solar, que pode ter sido também lugar de rituais relacionados com a agricultura.
 Recentemente alguém me chamou a atenção para uma pedra gravada integrada num caminho da aldeia, com elementos relacionados com os da Pedra da Escrita. Fotografei-a tal como aparecia no muro que o empedrado do caminho escondia e, depois, com a colaboração da autoridade local, levantámos a calçada pondo a descoberto a totalidade da pedra existente, provavelmente o fragmento de uma peça de maior dimensão. Fora reutilizada uma pedra já gravada com um conjunto de “covinhas”.
 É provável que este fragmento - no caso de ter relação com a pedra aqui citada - tenha constituído parte de um arquétipo móvel que, devidamente posicionado, indicaria a posição exacta da definitiva. Se assim for, fica reforçada a tese da utilização “científica” da aludida Pedra da Escrita.
 Encontrei entretanto elementos sobre um outro Calendário Astronómico (nele a Lua tem também a sua importância) em Chacra Mesa, num vale situado no noroeste do Novo México (EUA). Foram movimentadas três enormes lajes que, colocadas ao alto, projectam linhas de luz nas espirais gravadas no rochedo indicando o início dos Solstícios e dos Equinócios. O princípio é o mesmo do da Pedra da Escrita de Serrazes com a diferença de que é um feixe luminoso e não uma sombra que conduz à leitura do instrumento.
C uriosamente, 11h15m é a hora a que a luz atravessa o ponto de início da espiral no Solstício do Verão na “Roca Fajada”. 
 

No Vale do Erges
 A Pedra de Serrazes foi um marco no meu trabalho e, com ela, dei outro rumo à viagem. Viagem que, em 1991, me levou a trabalhar com gravuras rupestres no Vale do Tejo.
 As figuras acéfalas ali existentes colocavam-me uma questão para a qual não encontrava resposta: porquê sem cabeça?
 Encontram-se, próximo de alguns dos núcleos de gravuras, rochas picotadas sem forma definida que sugerem tratar-se de exercícios práticos com o fim de verificar o comportamento da rocha, as suas características, grau de dureza ou forma de lascar.
 Com os utensílios disponíveis na época, seria grande o esforço para concretizar uma figura por picotagem. Mais improvável ainda seria que aquela população se desse ao trabalho de a registar por acaso.
 Deveria haver alguma razão lógica para aquela supressão física.
 Em Maio de 2013 visitei, a convite do arqueólogo Francisco Henriques os "santuários" rupestres do Vale do Rio Erges, afluente do Tejo, que, com ele, delimita a fronteira com Portugal na província Espanhola de Cáceres. Juntou-se-nos Mário Chambino, arqueólogo que faz parte da equipa de investigadores que se dedicam a expedições arqueológicas, com resultados notáveis.
 O caminho que leva ao rio é escarpado, seguimos a salto por trilhos calcados por animais, ou por algum pescador solitário, pois contrabando por ali há já muito que se não pratica.
 Qualquer que seja o sentido em que nos desloquemos, nunca temos uma perspectiva comum do companheiro que nos precede. Ao descermos vimo-lo a pique, abaixo de nós, a cabeça em primeiro plano, as ancas escondendo parte dos membros inferiores.
 Durante a subida o nosso olhar esbarra nas pernas de um corpo a que a gravidade provocada pelo declive, obriga a andar inclinado fazendo um ângulo agudo com o terreno, e numas costas arqueadas, que lhe ocultam a cabeça.
 Apenas as gravuras do abrigo da Foz do Ribeiro das Taliscas eram abstractas, filiformes.
 As do Abrigo Catarina, junto à foz do rio Erges, as da Foz do Ribeiro da Enchacana e as da Tapada da Foz tinham em comum representações antropomórficas com e sem cabeça, uma delas com a cabeça assomando sobre as costas.
  As gravuras acéfalas aparecem descritas nos estudos e registos da especialidade como “não tendo cabeça figurada”. Nunca vi ou li nenhum estudo ou teoria para o facto de serem representadas sem aquela parte do corpo.
 O dia chegava ao fim. Iniciámo-lo com a visita ao Abrigo Catarina, de fácil acesso por se encontrar relativamente perto da ponte de Alcântara, junto do antigo posto de controlo fronteiriço. Os outros dois abrigos, pela dificuldade de acesso acabariam por nos tomar o resto do dia.
 Sentámo-nos numa rocha que mergulhava rio adentro, junto ao abrigo da Foz do Ribeiro das Taliscas comentando a viagem no tempo que nos foi dado viver nesse dia.
 Percorrêramos milhares de anos de história pela ponta de uns dedos já macerados vivendo, através deles, tempos de que não temos memória.
 Chegara a hora de regressar.
 De mochilas às costas e cajados na mão iniciámos a subida. O Chambino como “batedor” seguido do Francisco, eu fechando a fila.

 
 Observava os meus companheiros. Como seguia o Francisco que avançava num plano mais elevado, não lhe via a cabeça e as suas costas faziam um segmento de arco perfeito que lhe ocultava a cabeça (hoje, em função de experiências feitas com base na inclinação do terreno, estimo que o desnível seria, em média, de 50%).
 E com todas as dúvidas que possam ser levantadas, penso que a figuração destes antropomorfos sem cabeça pode ter origem no modo como, tal como eu, ao subir a encosta de regresso ao povoado estes homens se viam uns aos outros e assim se representavam.

 

 

 

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